29 de Janeiro de 2012

A profeta Marjane.
PERSEPOLIS
Marjane Satrapi
Jonathan Cape, 2006
344 págs., P&B


É muito difícil não fazer comparações entre Maus e Persepolis, especialmente tendo em conta o intervalo entre as duas leituras. Ambos são biográficos, debruçam-se sobre o tema da guerra e são a preto e branco mas enquanto o primeiro parece afastar-se do registo da biografia para entrar no campo documental, o segundo parece bem alicerçado no género biográfico e, de certa forma, é a sua maior fraqueza.
Em Persepolis, Marjane Satrapi relata a sua vivência enquanto iraniana e vítima de opressão de um estado intolerante muçulmano.
Ao contrário de Maus em que há um filtro externo - nesse caso é Art Spiegelman que pensa sobre a vida do seu pai e no livro expõe essa vertente reflectida da narrativa - o filtro de Satrapi é o tempo, ela é a protagonista da sua história.
Originalmente publicado em 4 volumes pela editora francesa L'Association, o livro divide-se em duas partes: The Story of a Childhood, que, como o nome indica, abrange a infância até a sua saída do Irão e The Story of a Return, sobre o seu regresso a casa após as suas experiências em Viena.
O desenho simples, a preto e branco, não é de um virtuosismo desmedido, se há momentos eficazes de storytelling/découpage, a verdade é que não entusiasma.
Em relação ao que é contado, à parte a revisão histórica e religiosa do Irão, a descrição do clima sufocante de perseguição e de censura, a luta e rebelião evidente e oculta, tudo se centra na figura de Marjane: criança-profeta, adolescente-punk e mulher-artista. É aqui que as coisas começam a desinteressar-me.
Não consigo lidar bem com os pequenos episódios de drama pessoal e adolescente, mesmo que se passem na adolescência de Marjane. Não me identifico. O que faz sentido, a protagonista é do género feminino, nunca chega a fazer parte da faixa etária em que me encontro e está a passar por coisas que nunca vivi: perseguição religiosa e intelectual, consumo de drogas, etc.
A verdade é que já tinha visto o filme antes de ler a bd (que chega a ser mais eficaz em determinadas sequências, um exemplo, o crescimento disforme de Marjane), claro que ser a seguir ao Maus também não ajudou, acredito que provavelmente terei uma melhor opinião numa segunda leitura. Portanto, espero poder dizer mais algo nessa altura.

14 de Janeiro de 2012

The last pamphlet.
OPTIC NERVE 12
Adrian Tomine, 2011
Drawn & Quartely
41 págs., tetracromia

Adrian Tomine era o menino-prodígio da banda desenhada alternativa americana, as histórias curtas introspectivas, com protagonistas diversos (tanto em género como faixa etária e estatuto social, que vem a desenvolver na Optic Nerve conseguiram alcançar notoriedade para que o artista tenha conseguido ilustrar para o conhecido The New Yorker, não que seja mais válido que fazer bd mas pelo menos tem mais prestigio (ver origem latina da palavra).
Neste número de Optic Nerve as coisas mudam, o comic está dividido em três secções (quatro se incluirmos a letter column), as narrativas são mais longas e há até um momento autobiográfico.
 Na primeira secção "A BRIEF HISTORY of the ART FORM KNOWN as "HORTICULTURE"" (págs. 05-23 ),Tomine diverge do que nos habituou, embora haja momentos de introspecção e análise em relação ao que é arte e o seu público-alvo, há uma aproximação em relação às daily strips dos jornais, tanto em conteúdo como em estrutura, aliás, na estrutura é flagrante, temos seis agrupamentos de quatro vinhetas cada, a preto e branco, que acabam com uma punchline e que, apesar de poderem ser lidas como uma unidade, permitem continuação para a unidade seguinte. Estas seis unidades (representativas dos seis dias da semana) são seguidas por uma página inteira, a cores, a emular as gigantescas sunday pages de outrora. O seu estilo de desenho está também simplificado, próximo do que vimos no "Scenes from an Impending Marriage: a prenuptial memoir", que parece ser agora o traço preferido do autor e que favorece a comicidade da história, para além de nos recordar de Peanuts ou Calvin and Hobbes.
 Na segunda secção "AMBER SWEET" (págs. 27-37), regressamos a algo mais típico, com traço mais apurado e limpo (e a cores!), acompanhamos uma coincidência que modifica a vida da protagonista e que, na minha opinião, se revela a menos interessante do comic mas que não deixa de ser visualmente bonita.
A terceira secção (págs. 40-41) é autobiográfica, nela a explicação do porque Tomine continua a usar o formato comic como meio de expressão. Enquanto que inúmeros dos seus colegas optaram pelo livro de capa dura, a opção estética (como tenta descrever antes de ser interrompido) é  discutida em duas páginas com exemplos de conversas e situações de carácter humorístico.
Adrian Tomine deixou de ser o menino-prodígio da bd alternativa americana impondo-se como referência pelo seu estilo de desenho acima da média e as suas personagens representativas de uma geração. Esta edição mais recente de Optic Nerve é uma homenagem ao que veio antes, seja historicamente (em relação à bd), seja pessoal (em relação ao passado do autor), que o reafirma como autor de comics mais que de graphic novels normalizadas de capa dura. Não é de admirar, há motivos para orgulho.

11 de Janeiro de 2012

175113
THE COMPLETE MAUS
Art Spiegelman
Penguin Books, 2003
296 págs., P&B


Maus relata a história da sobrevivência de Vladek Spiegelman durante a Segunda Guerra Mundial, contada pela mão do seu filho, Art.
É com este livro, inicialmente publicado em dois volumes  em 1986 e 1991 (e julgo antes até em capítulos na revista de bd artística de  Spiegelman, Raw), que Art Spiegelman atinge o estatuto que ainda acompanha o seu nome e é também com ela que a banda desenhada americana alcança reconhecimento como forma de expressão adulta, ganhando um prémio Pulitzer.
O que nos é contado divide-se em dois momentos diferentes: no presente, somos testemunhas da relação conflituosa de Art com o seu pai e onde o autor divulga ao que se propõe, as suas inseguranças em relação  ao projecto e à representação que faz do pai e do Holocausto; no segundo momento presenciamos a luta pela sobrevivência de Vladek e da sua família, judeus polacos, no ambiente inumano da altura. Há momentos de verdadeiro horror, sempre em primeira pessoa, a voz de Vladek (voz essa com uma representação muito própria, Spiegelman-autor decide manter as incorrecções no inglês do pai) conta-nos cada vivência, cada momento, e se há viés no que é dito, conseguimos perceber de onde vem, pois passamos a conhecer Vladek intimamente, as suas respostas passam a ser naturais.
Um dos pontos que definem este "texto gráfico" é a escolha de representar cada uma das diferentes nacionalidades/etnias por um animal específico, a escolha - rebelde - do rato para os judeus parece óbvia após ler a citação na página 164, embora pareça ser uma forma de despersonalização, esta representação aproxima-nos ainda mais das personagens, estamos mais atentos ao que dizem e à sua linguagem corporal, para além de que foi o povo judeu a ser oprimido e não um indivíduo especifico.
O preto e branco objectiva o relato, a simplicidade do traço é enganadora e propositada, podemos até compará-lo com o da "bd dentro da bd" (págs. 102-105) em que o desenho é mais pormenorizado e carregado, mais escuro, e mais pessoal (relativamente ao autor), embora a restante obra também o seja, parece tentar ser mais abrangente.
Na segunda metade do livro (o segundo volume), são-nos apresentadas as consequências do primeiro volume, Art Spiegelman representa-se com a máscara de rato (não será mais judeu mas alguém que o finge ser? Ou é visto como tal?) e por debaixo de si os cadáveres das vítimas do Holocausto, a base do seu sucesso e agora também da sua culpa pelo mesmo e pelo uso deste tipo de material e na sua regressão a uma corpo infantil quando confrontado com as pressões inerentes a esse sucesso. É também nesta altura que Spiegelman-autor tenta chamar a atenção para o formato da sua mensagem (na sua conversa com Françoise, no carro - pág. 176), a bd, e a forma como ela limita e molda a mensagem a transmitir.
De forma honesta e algo neurótica, Art Spiegelman, demorou treze anos a concluir a sua obra-prima, confrontou o seu passado e a sua relação com o pai e permitiu-nos como leitores a perceber até que ponto estamos próximos da catástrofe e da salvação. E tudo isto através da banda desenhada. Dá que pensar. 

8 de Janeiro de 2012

A capa do Premio Nacional del Cómic 2008.
ARRUGAS
Paco Roca
Astiberri Ediciones, 2007
104 págs., tetracromia

Chegamos a um ponto no nosso desenvolvimento como sociedade em que as reformas de valores ocorrem a intervalos cada vez mais curtos e a mudança de paradigmas é cada vez mais comum. A identidade de uma pessoa é construída com base em todas as suas experiências e vivências, é um processo moroso e continuado que leva anos a chegar ao fim, se é que alguma vez termina. Ser idoso actualmente não traz o mesmo tipo de respeito que trouxe no passado, se antes era ser alguém que desempenhava a função de sábio, de orientador na vida dos seus familiares, um papel preponderante na comunidade que ainda acontece nas civilizações "menos desenvolvidas", agora, no ocidente, as pessoas são tratadas como fardos incapazes (parafraseando Miguel). Não digo que seja a regra ou a sua excepção mas que há cada vez uma visão menos positiva em relação à velhice. Acompanhar a rapidez a que o mundo muda não é fácil e menos ainda a alguém cuja fundamentação do real está ultrapassada (ou estará?), nessa fase da vida em que o corpo nos falha (algo tomado como natural), sentir que estamos a perder faculdades mentais é ainda mais assustador, pois é tudo o que nos define e o apoio que antes era dado pelo ambiente familiar agora é relegado a instituições especializadas. 
Neste livro Paco Rosa reúne algumas das histórias que foi recolhendo entre amigos, conhecidos e na sua própria família e fá-lo de uma forma cativante e ternurenta. Emílio, a personagem que acompanhamos ao longo da narrativa, inaugura-a precisamente com um episódio de desorientação - vive um momento passado na sua juventude sem ter noção do presente - que parece ser o culminar de uma sucessão de eventos que força ou permite a que o seu filho tome a decisão de o deixar num lar. Aí Emílio conhece o cínico Miguel e uma série de outros idosos que habitam a instituição, cada um com uma característica que os define e identifica. Aos poucos, percebemos como funcionam os horários e movimentações dentro do lar e como Emílio vai perdendo as suas capacidades.
Nesses períodos de descontextualização, Emílio e os outros residentes vêem-se em situações que nos revelam um pouco sobre o seu passado e são os momentos-chave de caracterização das personagens. Conseguimos compreender a importância destes momentos e as motivações de cada um, personalizando-os, dando-lhes uma voz interior, tornando-os humanos. Em cada um destes episódios há uma regressão em relação à imagem pessoal mas o aspecto físico dos outros é como os vêem, portanto, temos acesso à forma como cada um se vê.
Em toda a obra há momentos de ternura e de humor, sem que estes minimizem os momentos de desespero e terror de Emílio à medida que se vai apercebendo do que lhe está a acontecer.
O desenho de Paco Rosa é simples e directo (que deve ter facilitado a sua recente adaptação ao cinema de animação), tem um bom entendimento de storytelling e de expressões faciais.
Resumindo, Arrugas é uma bd bem-feita, há um enredo simpático, bem fundamentado em termos científicos e, especialmente, em   relações humanas.

6 de Janeiro de 2012

Lucia revela-se.
CINQ MILLE KILOMÈTRES PAR SECONDE
Manuele Fior
Éditions Atrabile, 2009
144 págs. , tetracromia

Lucia  e Piero são dois adolescentes italianos que se conhecem quando a primeira, devido ao processo de separação dos pais, vem morar para o mesmo bloco de apartamentos do segundo. 
Longe de ser a história de amor típica que Hollywood nos impinge ad nauseam, a narrativa acompanha os protagonistas ao longo de 20 anos, os seus encontros e desencontros, as decisões que fazem ao nível das restantes relações nas suas vidas, até ao momento da sua separação final.
O traço espontâneo de Manuele Fior coaduna bem com o tom intimista do enredo, as suas aguarelas impõem o ambiente da narrativa, variando das cores quentes do episódio inaugural às paisagens gélidas da Noruega, mais até que o próprio texto. Aliás, é um livro "leve" tendo em conta aquilo que é contado, há uma superficialidade das personagens que, embora nos permita preencher os espaços em branco, nos faz questionar as suas motivações e torna-as ambíguas e, portanto, difíceis de compreender.
Só queria realçar as páginas que culminam com o beijo de Lucia e Sven, em pano de fundo o filme The Sword in the Stone, que mostra que na bd se pode "citar" outras formas de expressão de forma eficaz e reconhecível.