27 de Agosto de 2012

O poder da palavra.
THE UNWRITTEN
Mike Carey & Peter Ross
Vertigo Comics, 2009-2012 (continua)

Tom Taylor é, à falta de melhor palavra, um falhado. Wilson  Taylor, o seu pai, escreveu uma série de livros infantis à la Harry Potter cuja principal personagem, Tommy Taylor, é inspirada no seu filho. Após o desaparecimento misterioso de Wilson, Tom vive de circuitos literários, assinando os livros do pai, dando palestras e tirando proveito financeiro da sua "relação" com Tommy. Quando um membro do público coloca em dúvida a sua identidade, o seu mundo desmorona e assim começa a sua história.
O que inicialmente poderia parecer uma versão adulta de Harry Potter revela-se algo mais, Carey pretende abordar a importância das histórias e como elas influenciam a nossa vida. Em Unwritten uma organização secreta manipula o resultado de acontecimentos importantes ao longo da História e fá-lo recrutando escritores talentosos para que estes desenvolvam narrativas de acordo com os seus preceitos, com repercussões bem tangíveis e reais.
Esta premissa permite personagens de luxo (como Rudyard Kipling e Oscar Wilde); uma espécie de "geografia literária" de locais que estão ligados directa ou indirectamente a obras conhecidas; o uso de personagens ficcionais (o monstro de Frankenstein, Lizzie Hexam de Our Mutual Friend); diferentes formas de escrita... Enfim, Carey tem à sua disposição um conjunto infinito de possibilidades a explorar.
O recurso a personagens de ficção não é algo novo na banda desenhada e não falemos das tradicionais adaptações de obras clássicas. Um exemplo recente e mais conhecido é The League of Extraordinary Gentlemen de Alan Moore e Kevin O'Neil, inicialmente uma ode à literatura vitoriana que entrosava num só enredo as inúmeras referências aos livros (e seus contemporâneos) de onde tirava inspiração. Ao contrário deste The Unwritten parece ter objectivo mais especifico e dirigir-se para uma verdadeira conclusão (ou pelo menos ter uma já planeada).
A arte de Peter Gross é funcional e consistente, não impressiona pela sua estética mas é sólida e aos poucos estabelece o que é o visual da série: enraizado na realidade mas ainda assim capaz de voos de imaginação. Se se cumprissem os preceitos de uma série tipicamente americana um desenhador mais "atraente", mais espalhafatoso, acabaria por abandonar a publicação por não cumprir os prazos e a consistência visual da obra estaria comprometida. Gross é seguro e até hoje as coisas têm corrido bem, sem atrasos.
De referir ainda as maravilhosas capas de Yuko Shimizu (por favor não confundir com a  homónima criadora da Hello Kitty!) que à primeira vista parecem ser o embrulho bonito (como as capas, antes de James Jean, agora de João Ruas, de Fables) para a série mas não se iludam, cada capa é um resumo perfeito do que se encontra no interior. Se bem que a ascendência de Shimizu é perfeitamente notória na sua arte, nas capas os protagonistas (especialmente Tom) têm um ar asiático que, se calhar, não concilia bem com o interior tão ocidental em termos estéticos e temáticos. Mas são tão bonitas...
Este mês saiu o número 40 de The Unwritten e só nos resta acompanhar os autores até a última paragem do que espero ser uma longa viagem.

9 de Agosto de 2012

Drifter.
RASL
Jeff Smith
Cartoon Books, 2008-2012
382 págs., P&B

Jeff Smith é conhecido pelo seu épico Bone, de quase 1400 páginas, sobre três primos expulsos da sua cidade natal que se vêem numa terra desconhecida onde princesas e dragões acabam por inevitavelmente enfrentar as forças do Mal.
Se estes parecem ser os trâmites familiares da Fantasia básica, Bone sobressai pela sua excelente caracterização das personagens, o seu sentido de humor e o talento de Smith como cartunista e, acima de tudo, contador de histórias. Inspirado por Walt Kelly (cuja influência é notória no desenho dos primos titulares), Carl Barks e J.R.R. Tolkien, Smith conseguiu que Bone fosse um sucesso estrondoso especialmente entre as faixas etárias mais jovens.
Após quatro anos (embora neste intervalo tenha feito a mini-série Shazam!: The Monster Society of Evil para a DC Comics), Smith regressa com uma nova história que se distancia radicalmente de Bone. Ao que parece Jeff e alguns dos seus amigos tinham combinado que as suas próximas bds seriam de ficção científica e assim temos RASL (e também Echo de Terry Moore). No entanto, não podemos considerar que seja uma obra de ficção científica pura já que também tira muito dos filmes noir dos anos 40-50 e dos mitos criacionistas norte-americanos.
RASL é a estória de um ladrão que visita realidades alternativas em busca de originais de pintores famosos para poder vendê-los a quem mais pagar. Com o desenrolar da trama descobrimos o verdadeiro nome (e o significado do pseudónimo) do protagonista, as circunstâncias que o levaram a esta situação e as suas reais motivações.
Como pano de fundo Nikola Tesla, cientista e inventor do fim do séc. XIX e início do séc. XX. Através da sua biografia é-nos fornecida a base "científica" e um dos elementos intercalares (e interessantes) da acção.
RASL acaba por se revelar uma história de amor e traição e aí entram as convenções do género noir, a narração em primeira pessoa, os flashbacks, a relação extraconjugal com a mulher do melhor amigo, entre outros (há mesmo uma quase citação do Maltese Falcon lá pelo meio e fim!). Entretanto, Smith tenta também abordar os temas da religião e espiritualidade recorrendo à mitologia índia norte-americana e a duas personagens bizarras, uma em particular com papel preponderante na conclusão da narrativa.
Juntando-se ao elenco excêntrico temos Sal, principal antagonista e contraponto do herói,  que parece representar o pensamento primitivo (até no seu aspecto físico reptiliano), ou antes uma perspectiva fixa da realidade que não deve ser questionada e que é superior a todas as outras.
RASL não se equipara a Bone, o equilíbrio que o segundo tem entre leveza e profundidade (que nem são antónimos) não acontece no primeiro. A intenção do autor é precisamente atingir um público mais adulto e afastar-se de um universo ao qual se dedicou durante 13 anos e que o vai perseguir para sempre. Em relação ao aspecto formal da obra, a composição e perícia de Jeff Smith mantêm-se: sabe contar histórias. E tem-me no seu público cativo.